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sábado, 17 de maio de 2014

FAMILIA LUCENA DO RIO DE JANEIRO E PORTUGAL - GENEALOGIA

http://www.brasa.org/Documents/BRASA_IX/Lucia-Guerra.pdf

Acesse o link acima e veja todo o livro com a genealogia e história da Familia Lucena.

 Da cidade de Lucena, Espanha ao Brasil:
 Profª. Drª. Lucia Pereira de Lucena-Guerra

1. I.Capa - “Devoção à Virgem” - Pintura encomendada em
 ação de graças por D. José Pereira de Lucena. Pintura
 c. séc. XVIII. Foto enviada por Fernando Pereyra de
 Lucena.
 II. Brasão da família Lucena
 III. Página de livro português incitando o antisemitismo.
 IV. Foto de New Amsterdam.
2. A Etimologia.
3. A História: Os judeus de Sefarad.
4. A cidade de Lucena.
 1. El Siglo de Oro.
 2. A decadência.
5. Lucena: Topônimo usado como forma de sobrevivência.
6. Os Lucenas de Portugal .
7. O descobrimento do Brasil: os primeiros Lucenas.
 (Pernambuco, Pará e São Paulo)
8. Os Lucenas do Rio de Janeiro.
9. Henrique Pereira de Lucena: O Barão de Lucena.
10. Conclusões.
11. Anexos.
 1.Genealogia dos Lucenas do Rio de Janeiro.
 2.Os Lucenas na Genealogia Portuguesa.
 3. Os Lucenas na Genealogia Espanhola

INQUISIÇÃO PORTUGUESA - SÉCULO XVII

UMA MENINA NAS MALHAS DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS NO SÉCULO 
XVII: O CASO DE LEONOR DE FONTES 
Por Lina G F da Silva
 Alex Silva Monteiro
Graduado e mestre em História pela UFF

A comunicação visa apresentar a história de Leonor de Fontes, uma menina que se tornou ré da
Inquisição lisboeta no século XVII. Através da análise de seu processo busca-se compreender a lógica
de trato do Tribunal do Santo Ofício português com os réus menores de idade.
Chamava-se Leonor de Fontes, solteira, filha de Manoel de Fontes, advogado, homem letrado, e
Bárbara de Lena, ambos naturais e moradores de Leiria e reconciliados pelo Tribunal do Santo Ofício;
menina que, como muitos dos réus da Inquisição portuguesa, era cristã-nova. Por conseguinte, Leonor
compunha um grupo social naturalmente suspeito de apartar-se da religião oficial do Reino: a fé
católica, praticando secretamente a heresia judaizante. Vale lembrar que o Tribunal do Santo Ofício
português tinha como prioridade o combate às heresias, em especial a heresia judaica. Fora criado em
meio ao desenvolvimento da perseguição aos descendentes das famílias judaicas que, em 1497,
passaram a ser denominados de “cristãos-novos”, devido à obrigatoriedade da sua conversão ao
catolicismo, diferentemente dos cristãos-velhos, descendentes de famílias que não possuíam
ascendência judaica. “Cristãos-novos”, cristãos batizados, mas nunca cristãos sinceros, sempre
suspeitos de práticas judaizantesi
.
Leonor era solteira e tinha um círculo de amizades muito peculiar, composto de moças solteiras
de várias idades. Por volta do ano de 1631, encontravam-se Leonor e suas amigas regularmente, ora em
casa da própria Leonor, à Rua Nova, ora na casa de seu tio paterno, Simão de Fontes, médico, ora à
Rua da Misericórdia, onde ficava a residência das irmãs Isabel de Miranda, de 30 anos de idade, e
Gregória de Miranda, de 18 anos, cristãs-novas como Leonor. Participavam destes encontros outras
jovens da cidade de Leiria, entre as quais Felipa Soares, irmã de Leonor, que devia ser de 18 anos, as
irmãs Maria da Pena, que tinha um quarto de sangue cristão-novo, de 17 anos, e Joana, de dez anos, as
primas destas, as irmãs Angela Soares, de 18 anos, e Antonia da Costa, de quem não sabemos a idade.
Da família de Leonor também participava sua prima Isabel Pinto ou Soares (citada ora com um
sobrenome, ora com outro), filha do médico Simão de Fontes, e uma criada desta, também chamada
Isabel (de alcunha a Mouca ou a Mouquinha), de 20 anos, cristã-nova, filha bastarda de Sebastião
Lopes.
A análise do grupo de moças que foram delatas no processo de Leonor de Fontes nos mostra
que elas eram ligadas por laços de família, criadagem ou mesmo só aparente amizade. As informações
contidas no processo informam que Isabel de Miranda, Gregoria de Miranda, Maria da Pena e Felipa
Lopes, foram processadas meses antes ou concomitantemente ao processo de Leonor. Tudo indica que
todas as moças processadas colaboraram com o Tribunal, delatando suas cúmplices e seus próprios
erros.
Discutiam nestes encontros coisas da mocidade, provavelmente, mas também coisas da fé. Não
da religião oficial, vale sublinhar, mas as práticas da Lei de Moisés e as crenças judaicas. Lembremos
que o grupo era eminentemente de moças com alguma mácula de sangue cristão-novo. Assim, não era
de se estranhar o diálogo a respeito da fé considerado herética pela Igreja.
O grupo se desfez no começo do ano de 1632, com a prisão, por parte do Santo Ofício, das
irmãs Miranda. Não temos o processo sofrido por elas em Lisboa, contudo, parte de suas
confissões foi anexada como testemunhos no processo aberto contra Leonor, um ano após a
prisão.
A primeira a ser arrolada como testemunha no processo contra Leonor foi Gregória de Miranda.
Presa por judaísmo em 20 de março de 1632, quando era de 19 anos de idade, acabou reconciliada,
saindo em auto-de-fé em 09 de janeiro de 1633. Em sua confissão, feita a 19 de julho de 1632, depois
de já tê-lo feito quatro dias antes, declarou que, em janeiro de 1631, em Leiria, na Rua Nova, em casa
de Simão de Fontes, estando presentes Isabel Soares, Isabel (de alcunha a Mouquinha), Felipa Lopes e
Leonor, todas se declararam judias, dizendo crer na Lei de Moisés para a sua salvação, guardando os
sábados de trabalhos, vestindo camisas lavadas, não comendo carne de porco, de lebre, de coelhos, nem
peixe de peleii. Gregória bem sabia que devia confessar as práticas judaizantes, pois sua irmã, Isabel de
Miranda, arrolada como segunda testemunha no processo contra Leonor, havia sido presa dias antes
dela, em 02 de março de 1632, também por suspeita de judaísmo, e possivelmente poderia já ter
delatado tanto ela quanto as demais amigas.
Contudo, Isabel fez sua primeira confissão em 26 de junho de 1632, sete dias após a confissão
da irmã. Sobre Leonor, Isabel fez menção apenas em sessão realizada em 19 de outubro do mesmo ano,
quando relatou um caso similar ao que já havia sido confessado meses antes, por sua irmã. Isabel. Disse
que
(...) havera ano e meio pouco mais ou menos na dita Cidade de Leiria dia e mês
de que em particular não se lembra foi ela confitente a casa do Doutor Simão de Fontes
médico, e estando ali visitando sua filha Isabel Pinto, de que tem dito, E achando-se
também presente Isabel a mouca criada desta filha bastarda de Sebastião Lopes e
Felipa Lopes, E Leonor irmãs filhas do Doutor Manoel de Fontes e de Bárbara de Lena
de que disse, a mais moça das quais será para fevereiro de doze anos e Maria da Pena
filha de Francisca da Pena, e Joana sua irmã raparigas ambas digo a mais pequena
poderá ser cousa de dez anos. Estando todas sete veio a dizer a dita Isabel a mouca
entre outras praticas a ele confitente que lhe haviam ensinado que cresse na lei de
Moisés já disse que, E que lhe disseram que era bom crer nela para se salvar, e
dizendo-lhe ela confitente que o mesmo lhe haviam ensinado se dizer que com esta
ocasião ela confitente E as ditas Isabel Pinto, Maria da Pena se deram ali conta e
declararam que criam e viviam na lei de Moisés, E nela esperará salvar-se o que tudo
ouviram as ditas Leonor, E Joana sem falar-se por cousa algumaiii
.
De acordo com Isabel, Leonor estava para completar doze anos em fevereiro de 1633, e todas as
meninas declararam crer e viver na Lei de Moises, só Leonor e Joana ficaram caladas. Por serem ainda
muito novas, estavam provavelmente aprendendo com as demais, não tendo muito a falar dos costumes
judaicos. Isabel inclui em seu relato a presença de Maria da Pena e Joana, antes não citadas por sua
irmã Gregoria. Isabel de Miranda foi reconciliada e saiu em auto-de-fé em 09 de janeiro de 1633iv
.
Gregória e Isabel em suas confissões relataram aos Inquisidores terem sido ensinadas e que
criam e viviam na Lei de Moises, ou seja, viviam segundo os costumes dos judeus. Estas práticas e
crenças confessadas pelas moças eram suficientes para que fossem punidas e para que as pessoas por
elas citadas também fossem investigadas pelo Tribunal como hereges e apóstatas da “Santa Fé
Católica”, incorrendo em criptojudaismo.
Por conseguinte, após as delações das irmãs Miranda, Leonor passou a ser investigada pelo
Tribunal, que já tinha duas testemunhas contra ela, o que dava respaldo para começarem as inquirições;
além disto, segundo informação de Isabel, Leonor já estava para completar doze anos, a “idade da
discrição” . Dois meses depois da delação acima, em 31 de dezembro de 1632, Leonor de Fontes foi
presa com seqüestro de bens, o que era natural nos casos de suspeita de judaísmo, e levada para o
Tribunal de Lisboa
.
Dias após sua prisão em Leiria, em 13 de janeiro de 1633, Leonor foi chamada a Lisboa, aos
Estao e à casa do despacho da Santa Inquisição, na presença dos Inquisidores, para realizar sua
primeira sessão, sessão preliminar, utilizada como apresentação da ré a Mesa para abertura do
processo. Nesta ocasião, foi ressaltado pelo Inquisidor que Leonor “se aparentava parecer não ter idade
suficiente para ser capaz de culpa”vi, mas como estava presa seguiu-se a rotina para a ocasião.
 lhe fizeram algumas perguntas a saber donde era natural, E moradora cuja
filha e de que idade era ao que respondeu ser da Cidade de Leiria, filha de Manoel de
Fontes, advogado, e de Bárbara de Lena, e que seria de idade de pouco mais de dez
anos e ficara muito pequena quando seus pais foram presos e que tudo respondeu como
quem sabia o que lhe perguntavam; e perguntada depois se tinha culpas que confessar,
e outras cousas concernentes a esta matéria a tudo respondeu que não sabia o que lhe
perguntaram (...)vii [grifo meu].
Aliada à primeira impressão de Leonor que teve a Mesa, de ser ainda muito nova para ter culpa,
a ré afirmou ter dez anos de idade. Contudo, de acordo com a confissão de Isabel de Miranda, Leonor
estava prestes a completar os doze anos: “idade da discrição”, o que ocorreria em fevereiro de 1633.
Haveria Leonor enganado Isabel e suas amigas, para melhor ser aceita no grupo, pois aos doze anos a
menina era considerada em idade para se preparar para o casamento, ou seja, já era tida por moça? Ou
havia sido instruída por alguém para que, caso fosse levada ao Tribunal, diminuísse sua idade em um
ano ou alguns meses, pois assim seria considerada inocente, incapaz de malícia e provavelmente
liberada?
Os inquisidores sabiam que as moças conheciam bem umas às outras e que, provavelmente, a
testemunha, Isabel de Miranda, mulher de trinta anos de idade, deveria saber a idade da sua cúmplice.
Entretanto, para resolver a pendência quanto à idade da Ré, os Inquisidores “mandaram que antes de
outra cousa se ajuntasse a estes autos certidão da idade da dita Leonor, e que entretanto fosse
depositada em casa do familiar Agostinho de Góes”. Ficaria assim a jovem Leonor aos cuidados da
família de uma oficial do Santo Ofício até que fosse comprovada a sua discrição e capacidade de
responder frente ao Tribunal.
Os Inquisidores cumpriam, deste modo, o que rezava o Regimento de 1613, vigente na época
do processo, que considerava a moça capaz de dolo, ou seja, com capacidade para saber o que era certo
ou errado, somente a partir dos doze anos completos, ao entrar na “idade da discrição”. Mas o
Regimento não isentava as moças menores de doze anos de serem investigadas pelo Tribunal, bem
como de terem algum tipo de sanção disciplinar, contudo, não poderiam abjurar em público e, por
conseqüência, sofrer qualquer penalidade que trouxesse desonra pública. Provavelmente, menores que
a “idade da discrição”, na vigência deste Regimento, só poderiam sofrer punições espirituais ou, no
máximo ,abjurariam em secreto perante a Mesa.
Pela análise deste processo, podemos constatar que menores que a ‘idade da discrição’ não
deveriam sequer ser presos nos cárceres secretos ou mesmo da penitência. Por isto, Leonor foi entregue
a um familiar do Santo Ofício para hospedá-la em sua residência enquanto se averiguasse a questão da
sua idade. A menina estaria, assim, como que em uma prisão domiciliar.
Chegada a Certidão de Idadex
, assim chamada no processo, vem informando que Leonor havia
sido batizada em 26 de fevereiro de 1621 na cidade de Leiria. Confirmado que a ré tinha 12 aos de
idade, abria-se o processo contra Leonor, em 13 de abril de 1633, data em que o familiar Agostinho de
Góes foi chamado a trazer a ré para novamente apresentar-se à Mesa. Após a rotina inicial (nomear pai,
mãe e pátria), foi perguntada pelos senhores Inquisidores Pedro de Aguiar e Diogo Osório de Castro
“se queria confessar suas culpas, do que se usaria com ela de muita misericórdia visto sua pouca
idade”xi
.
Os inquisidores já tinham ciência de que Leonor passara dos doze anos, contudo, como dizia ter
dez anos, insinuaram-lhe que sua pouca idade seria um atenuante para suas culpas. Leonor, entretanto,
recusou-se a declarar qualquer fato, como quem não sabia o que se estava passando, pediu “que a
encaminhasse no que havia de dizer”xii, o que logo foi recusado pelos inquisidores, ordenando-lhe que
se retirasse da sessão.
Os inquisidores já tinham a garantia da idade da ré, entretanto, meticulosos nos detalhes, para
mais se fundamentarem da capacidade da jovem, indagaram o familiar Agostinho de Góes, que a havia
recebido em sua casa, por quase quatro meses, sobre suas impressões a respeito dela. O mesmo
respondeu que “poucas vezes falava com ela, mas que lhe parecia que tinha discrição bastante. E a
mesma opinião havia na gente de sua casa com quem a dita Leonor tratava mais”
.
Somadas a descoberta da idade da ré e as impressões do dito Agostinho de Góes sobre sua
discrição, os inquisidores chegam à avaliação que Leonor tinha “capacidade suficiente e a idade é [era]
bastante” xiv
.
Comprovado que Leonor havia atingido a “idade da discrição”, assim só restava averiguar se
sua postura também era a de quem já atingira a discrição. Uma vez que, conjuntamente com a idade, a
demonstração da capacidade de malícia fazia com que a pessoa deixasse de ser considerada uma
criança, em linguagem atual, e viesse a ser capaz de culpa e já não seria mais uma inocente, como
afirmavam à época. Por isto, fazia-se importante a opinião de Agostinho de Góes, que havia convivido
com a ré, e a dos próprios inquisidores, nas sessões em que a haviam inquirido.
Considerada apta a responder por seus delitos, cometidos ainda na infância, só restava dar
continuidade ao processo. Determinava-se, por conseguinte, que a mesma fosse trazida da casa do
familiar Agostinho de Góes e, cumprindo determinação de 31 de dezembro de 1632, data em que tinha
sido autorizado sua prisão, fosse levada aos cárceres secretos de Lisboa, os mais temidos pelos réusxv
.
Leonor, aos doze anos de idade, passava a ser tratada como ré comum do Tribunal. Para piorar a
situação da jovem, Maria da Pena, outra de suas amigas citada na delação de Isabel de Miranda, havia
sido presa por judaísmo em 13 de janeiro de 1633, coincidentemente ou não, no mesmo dia que se
realizou a primeira sessão de Leonor junto à Mesa.
Maria da Pena era solteira, de 17 anos, tinha um quarto de sangue cristão-novo, filha de Gaspar
da Ponte, cristão-velho, e de Maria da Pena, meio cristã-nova, reconciliada, de Leiria.
 A confitente não havia incluído a menina Leonor em seu primeiro relato. Contudo, era
do conhecimento do Inquisidor que elas se conheciam, de acordo com a confissão de Isabel de
Miranda. Deste modo, em nova sessão, em 22 de abril de 1633, a jovem Maria relatou que, na
comunicação que havia tido com as ditas moças,
(...) se achou também presente Leonor de Fontes filha de Manoel de Fontes e de
Bárbara de Lena solteira que será de doze anos pouco mais ou menos o qual também ali
disse que vivia na lei de Moisés digo que queria crer na lei de Moisés e fazer por
observância
Fechava-se o cerco contra Leonor. Contudo, faltava a prova mais importante de qualquer
processo inquisitorial: a confissão – realizada em 03 de setembro de 1633, nove meses após sua prisão,
na presença do Inquisidor Pedro da Silva Faria. A ré repetira, como era de costume, os dados já
relatados em sessões anteriores; quanto à idade, desta vez confirmou ter doze ou treze anos. Sendo
menor, embora discreta, recebeu, como mandava o Regimento Inquisitorial de 1613xvii, um curador.
Para tal foi nomeado Roque Sirão, Alcaide dos Cárceres, oficial do Santo Ofício.
Sob orientação do dito curador, a ré, frente à Mesa, confirmou que a cerca de dois anos
antes esteve na casa de Gregória de Miranda, local que costumava freqüentar habitualmente,
encontrando no local o grupo de moças já relatado. Nestas reuniões eram as moças instruídas por
Gregória de Miranda para crer e viver segunda a lei de Moisés. E que ela “confitente movida do
dito ensino, se apartou ali da fé de Cristo não boa, e se passou a crença da lei de Moisés tendo-a
por boa, e esperando salvasse nela” xviii assim também as demais moças ficaram crendo.
Mais bem sabia a jovem Leonor do risco que era abraçar a crença na lei de Moisés, pois na
mesma confissão relatou, ao conversar com Isabel a Mouquina, uns 15 dias após ter sido doutrinada por
Gregória, que a dita Gregória lhe dissera para manter segredo e “não dissesse nada a ninguém nem ao
cura quando se fosse confessar senão que há havia de matar”xix
.
Para os inquisidores, pior do que praticar os ritos judaicos era propagá-los. Assim, o ensino da
Lei de Moisés era severamente perseguido e punido pelos inquisidores. Por conseguinte, ao serem
presos por suspeitas de judaísmo, os réus precisavam dizer quem os havia ensinado, muitas vezes, tanto
quanto o que haviam ensinado. Lina Gorenstein Ferreira da Silva ressalta que este ensino era feito
geralmente em família, pela mãe, pelo pai ou por outro parente próximo. Primeiramente, para manter a
tradição de família, porém havia também a necessidade de os cristãos-novos conhecerem o judaísmo,
para poder lidar com os trâmites dos processos inquisitoriais, pois precisavam saber o que confessar,
quando fossem presos, caso contrário poderiam ser tidos como réus negativos e chegar a ser
condenados a penas mais severas
.
A respeito do local de propagação da fé judaica, o processo que analisamos tem como
especificidade o fato de o ensino do judaísmo não se dar em família, de pais para filhos, ou pelos
parentes próximos, como tem sido levantado pelos pesquisadores que tratam do tema
, mas em
conversas entre jovens moças. De acordo com a confissão de Leonor, era a jovem Gregória de
Miranda, de 18 anos, que se encarregava de doutrinar as demais moças nas coisas da fé judaica. E
como os inquisidores não se surpreenderam com o fato nem questionaram ser falso, tudo leva a crer
que as demais moças do grupo, que foram processadas, tenham afirmado o mesmo.
Sendo de dez anos de idade quando das conversas heréticas, Leonor estava ainda aprendendo os
costumes judaicos. Segundo Lina G. F. da Silva, as idades em que se doutrinavam as pessoas variavam
muito. Em sua pesquisa sobre cristãs-novas da cidade de Rio de Janeiro, no século XVIII, a autora
encontrou a mais nova sendo doutrinada aos seis anos e a mais velha, aos 54. Desta forma, podemos
constatar que não seria nada excepcional a menina Leonor estar sendo doutrinada aos dez anos. Deste
modo, nas conversas com suas colegas ela aprendia o que estas lhe passavam, principalmente Gregória
de Miranda, tida como a líder do grupo, na pseudo ou cripto-escola judaica formada por moças, na
Leiria seiscentista.
Assumindo suas culpas, relatando seus cúmplices, pedindo perdão e misericórdia, Leonor
realizou com êxito sua confissão. Fez tudo conforme mandava o script de uma boa e sincera confissão.
Ao que tudo indica, satisfez os inquisidores, sendo chamada novamente à Mesa em 17 de setembro,
mesmo mês da confissão, para realizar a sessão de Genealogia, onde informou aos inquisidores sobre
seus familiares. Entretanto, tinha poucas referências a respeito de seus ascendentes, conhecia poucos
tios, tendo maior contato apenas com a família do tio paterno Simão de Fontes. Em 07 de outubro de
1633, retornou à Mesa para a sessão de Crença e Ratificação, cujo propósito era inquirir a ré sobre a
natureza das suas práticas heréticas judaizantes. Sobre a mesma relatou, ao ser perguntada, que
quem a obrigou a deixar nossa Santa Fé, e passar-se a dita crença.Disse que o
ensino que quem lhe fez Gregória de Miranda como bastante declarado. (...)
Perguntada se no dito tempo tinha os erros que cometeu por pecados, E dele dava conta
a seus confessores.Disse que no dito tempo não tinha os ditos erros por pecados, nem
deles dava conta a seus confessores. Perguntada se no dito, entendia que ter crença na
dita lei de Moises e fazer seus ritos e cerimônias, era contra o que tem e ensina a Santa
Madre Igreja de Roma. Disse que bem sabia entendia.
Conduzida pelas perguntas feitas pelo inquisidor, perguntas de rotina no caso de suspeita de
judaísmo, Leonor foi clara e direta em suas respostas. Mostrava aos inquisidores que estava, desde a
descoberta de sua real idade, bem segura no que dizia, diferentemente das primeiras sessões, quando
pedira para que a Mesa lhe ensinasse o que havia de dizer. Assegurava, assim, aos inquisidores que a
avaliação feita por eles da sua capacidade era pertinente. Por mais que Leonor afirmasse que, no tempo
das conversas com as outras moças, não sabia serem tais atos pecado, agora ela precisava entender que
tudo o que fazia ia contra os ensinamentos da “Santa Fé Católica”.
Como não caiu em contradição, os inquisidores aceitaram bem suas declarações e deram por
concluída a fase de inquirição. Faltavam, contudo o Libelo Acusatório e a proclamação da Sentença.
A ré foi declarada culpada uma vez que
 sendo cristã batizada, obrigada a ter, e crer tudo o que tem crê, e ensina a
Santa Madre Igreja de Roma ela o fez pelo contrário e depois do último perdão geral
persuadida com o ensino, e falsa doutrina de certa pessoa de sua nação se apartou de
nossa Santa Fé Católica, e se passou a crença da lei de Moisés tendo-a ainda agora por
boa, e verdadeira esperando salvar-se nela, e não na fé de Cristo Nosso Senhor, na qual
não cria em o tinha por verdadeiro Deus, antes esperava por ele como os judeus
esperam, (...) perseverando nestes erros até ser presa nos cárceres do Santo Ofício: o
que tudo visto com o mais que dos autos consta declaram que a Ré foi herege apóstata
de Nossa Santa Fé Católica
.
Em seguida, ressaltaram-se os atenuantes e foram declaradas as penas:
 incorreu em sentença de excomunhão maior, e em confiscação de todos os seus
bens aplicados ao fisco, e carcerário e nas mais pessoas em devido contra os
semelhantes estabelecidos, porém visto como visando a Ré de melhor conselho
confessou suas culpas na mesa do Santo Ofício com mostras, e sinais de arrependimento
pedindo delas perdão, e misericórdia com o mais que dos autos resulta recebe a Ré
Leonor de Fontes ao grêmio, e unção da Santa Madre Igreja como pede; e lhe mandam
que vá ao Auto de Fé na forma costumada, e nele ouça sua sentença, e abjure
publicamente seus heréticos erros em forma, e em pena e penitência deles lhe assinam
cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores, e será instruída nas cousas da
fé necessárias para salvação de sua alma, e cumprirá as mais penas, e penitências
espirituais, que lhe fosse imposta, e mandam que da excomunhão maior, em que
incorreu seja absoluta em forma declesid [sic]xxv
.
Absolvida da excomunhão maior, mas sentenciada a auto-de-fé na forma costumada – Leonor
saiu em auto-de-fé em 12 de abril de 1634, aos treze anos de idade, um ano após a abertura oficial do
processo – com abjuração pública em forma, cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores,
confisco de bens e mais instruções e sentenças espirituais. Um pacote de penalidades bem tradicionais
para o tipo de crime que praticou. Sua condenação não foi das mais severas, pois não era ré reincidente,
mas poderia ser mais branda, considerando-se que não passava de uma menina que ouvia, atenta ou
distraída, as exortações judaizantes das mulheres do conventículo mais experientes. Ressalte-se que,
em momento algum da proclamação da sentença, foi citada sua pouca idade como atenuante, por mais
que houvesse todo o debate a este respeito no começo do processo, inclusive a promessa dos
inquisidores de levar este fato em consideração. Se esta promessa foi cumprida, não ficou aparente, por
não mencioná-la e pela sentença proclamada ser utilizada de forma costumeira. Para melhor entender o
grau da condenação sofrida por Leonor, citamos o levantamento feito pela historiadora Lina G. F. da
Silvaxxvi, que constatou, ao levantar 147 processos de mulheres, cristãs-novas fluminenses, condenadas
pelo Santo Ofício português, no século XVIII, que 73,46% delas foram condenadas a cárcere e hábito
penitencial perpétuos, e 14,28%, a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores.
Também costumeira foi a abjuração escolhida pelos inquisidores para a ré, que abjurou em
forma, sendo a mais severa modalidade de abjuração a de veemente suspeita na fé, e a mais branda, das
realizadas em público, a de leve suspeita na fé. Segundo Lina G. F. da Silva, nos 147 processos por ela
analisados, apenas uma condenada não abjurou em forma ou de veemente suspeita na fé
.
A abjuração era a fórmula pela qual o penitente confessava plenamente a sua heresia,
prometendo não mais cair em pecado. Assim, todo herege, para ser “reconciliado” com a Igreja, devia
abjurar seus erros e declarar que queria permanecer na fé católica. Ser reconciliado significava ser
readmitido no seio da Igreja. Havia a abjuração em secreto diante da Mesa, contudo, Leonor foi
sentenciada a abjurar publicamente, vista por todos em seu auto-de-fé
.
Leonor não ficou muito tempo presa e, usando o hábito penitencial, vestimenta que identificava
os condenados, fazendo com que fossem insultados e difamados publicamente, pois em
(...) 21 de abril de 1634 (...) os Senhores Inquisidores mandaram vir perante si a
Leonor de Fontes Ré conteúda neste processo que estava cumprindo digo que estava no
cárcere da penitência para ser instruída nas cousas da fé. E sendo presente lhe foi dito
que ela neste primeiro ano que se confesse nas quatro festas principais ou em seus
oitavários, e comungue de mandado de seu confessor, e no fim do ano, mande escrito a
esta mesa do ano assim e sempre, e rezava em cada sábado um rosário e jejuava em
cada mês uma sexta-feira, e lhe conceda o hábito que lhe foi logo tirado, em outro dano
das mesmas penitências a saber confissões, jejuar e orações, a que ela prometeu
cumprir tudo sob cargo do dito juramento (...)

Deste modo, a ré, nove dias após sair em auto-de-fé, retirava o hábito e era liberada do cárcere
da penitência, onde se encontrava para ser instruída nas coisas da fé. Leonor assim ficou um ano, três
meses e vinte e um dias sob a guarda do Santo Ofício de Lisboa. Completou lá sua “idade da discrição”
e, ainda nova, aprendeu que o judaísmo era um perigoso caminho no mundo em que vivia; exemplo
tinha em casa, pois seus pais já haviam passado pelo mesmo suplício, quando era de muito pouca idade,
como ela mesma declarou.
Possivelmente era a heresia judaizante a causa principal de preocupação dos inquisidores para
com os mais jovens, pois bem sabiam que estes deveriam estar sendo doutrinados por seus familiares
ou amigos. Além disso, como já afirmavam os regimentos o processo deixa claro que era a idade de
doze anos a norteadora para uma pessoa, no caso de moças, ser processada pelo Tribunal. Assim, aos
olhos dos inquisidores ao processar Leonor, o Tribunal não estava condenando uma inocente. Isto
porque Leonor foi avaliada como sendo capaz de culpa, pois, como afirmou o inquisidor, tinha ela
“idade bastante” para responder por seus atos.
Portanto, parece ter sido o discernimento a propósito do erro conjuntamente a questão da idade,
as condições de a pessoa deixar de ser considerada como inocente, ou seja, uma criança, como dizemos
hoje, e responder ante ao Tribunal inquisitorial por seus atos.
Não cabe aqui fazermos comparações entre a conduta atual que nossa sociedade tem para com a
criança e a que era tida pelo Tribunal do Santo Ofício em Portugal a Época do Antigo Regime.
entanto, a análise do processo de Leonor demonstra o quanto o Tribunal estava longe de ter uma noção
de infância, como um período da vida do homem em que este deve ser protegido. O Tribunal estava
sim preocupado com a proliferação das heresias daí ter norteado sua visão de infância na capacidade de
malícia. Por conseguinte, ainda permanecia longe de uma noção abrangente da infância, como
frutificaria no século XIX, mas em contraposição afastava-se da curtíssima infância medieval que
findava aos sete anos de idade. No domínio da heresia – da heresia formal – a Inquisição se acautelava
e cuidava de averiguar, e mesmo punir, se cabível, o que hoje chamaríamos de crianças.